Cifrão, o signo monetário universal

Uma análise do cifrão na história da moeda de papel no Brasil

Diego Maldonado
10 min readFeb 10, 2017

Resumo:

Este artigo tem o intuito de observar o uso dos símbolos monetários cifrão e dólar no século 19 e início do século 20 nas moedas de papel brasileiras. Para caráter de análise, define-se aqui o cifrão como o caractere formado por um “S” cortado por duas barras verticais ($)e dolar como o “S” cortado por apenas uma barra vertical($). O intuito é estudar a evolução da forma e contexto dos caracteres a partir de 1810, data da mais antiga cédula catalogada no livro Dinheiro no Brasil, por Florisvaldo Trigueiros, e analisar também sua representação em texto até o atual modelo do Real (R$) criado em 1994. O artigo tem ainda intenção de levantar questionamentos em volta do símbolo do cifrão/dólar no Brasil em pontos não muito claros na história.

Leia o texto completo abaixo, ou veja as fichas de análise diretamente aqui

Nota: este artigo foi desenvolvido na disciplina Memória Gráfica e Cultura Material, que cursei no segundo semestre de 2016 como ouvinte na pós-graduação da FAUUSP. Os professores orientadores foram Marcos da Costa Braga & Priscila Farias.

Obs: Curiosamente e felizmente para facilitar meu texto aqui no Medium, a versão itálica da tipografia padrão possui o símbolo do cifrão $ —

[ edit: infelizmente o Medium mudou a tipografia e a afirmação acima não é mais verdadeira. Ao longo do texto considere o $ como se tivesse dois traços. ]

O Cifrão:

Segundo GONÇALVES, no livro Casa da Moeda do Brasil: 290 Anos de História[2] o desenho do cifrão tem uma origem mitológica. O que definimos como um S, na verdade representa o estreito de Gibraltar, que na Grécia antiga era considerado um rio e divide o Marrocos da Espanha.

Na mitologia grega, Hércules teria utilizado uma maça (arma composta de uma haste com uma bola na ponta) para abrir as montanhas, assim permitindo o acesso do Mar Mediterrâneo ao Oceano Atlântico. Com este golpe, de um lado se formara um grande rochedo, hoje conhecido como Gibraltar, do outro, o Monte Acho, e, a leste a Ilha Ceuta.

As duas colunas que se formaram com Gibraltar e o Monte Acho são conhecidas como as “Colunas de Hércules”. Elas são representadas pelos dois traços verticais que cortam o “rio S” no desenho do cifrão.

Os símbolos monetários possuem relação direta com a história da moeda brasileira e em outros países. Ainda segundo Gonçalves, a palavra cifrão tem raiz etimológica no termo árabe “cifr” — o autor não informa em seu texto o significado da palavra ou a grafia em árabe (e a latinização da palavra também não parece estar da forma correta, ou pelo menos adequada às regras atuais), através de consulta a pessoas fluentes na língua, encontrou-se que o termo pode ser interpretado como “zero”(‭ ‬صِفْر), o que não faz muito sentido no contexto monetário. Nesta mesma consulta outra palavra que possui fonética e grafia similar foi considerada “çufr” (‭ ‬صُفْر‭‬), esta pode ser interpretada como ”dinheiro” ou “bronze”, o que faz mais sentido no tema e também poderia ter originado o termo.

Não é possível precisar o momento exato em que o símbolo aparece em documentos pela primeira vez, mas especula-se que o navegador muçulmano de origem incerta Ṭāriq ibn Ziyād (طارق‭ ‬بن‭ ‬زياد), que segundo o site do Governo de Gibraltar[4], navegava pelas águas ao redor da região no ano de 711, tenha sido um dos primeiros a cunhar o termo, que inicialmente tinha a pretensão de ser o signo universal do dinheiro, acompanhado de uma ou mais letras que indicariam a moeda do vigente no país.

Hoje podemos ver que esta pretensão não foi bem sucedida, visto que existem diversos símbolos monetários ao redor do mundo. A priori no Brasil, o cifrão era utilizado para a divisão de milhar nos valores de Réis, como por exemplo Rs.50$000 (cinquenta mil réis), a partir do Cruzeiro (1942), ele passa a vir antes do valor monetário, assim indicando que aquele número se refere a dinheiro, por exemplo Cr$1.000 (mil cruzeiros), e com este intuito o cifrão ou dólar é utilizado até os dias de hoje.

Definições:

Os artefatos levados em conta para análises são moedas de papel, sendo elas cédulas e cheques que eram utilizadas para repasse, até início do século 19. Segundo TRIGUEIROS, 1987[2] pág. 22, “Moeda de papel é todo documento com poder aquisitivo, emitido pelo Estado, ou por sua autorização.” Ainda na mesma página, ele define três tipos de moeda de papel:

“1 — Representativa: quando expressa quantidade de mercadorias ou de moeda metálica em depósito. É emitida sob a garantia de um lastro metálico correspondente ao valor nela expresso, sendo conversível à vista, à vontade do portador e tendo curso legal

2 — Fiduciária: quando contém a simples promessa de pagamento, com a particularidade de ser lastro metálico inferior ao valor total das cédulas emitidas. Sua aceitação depende da confiança inspirada pelo emitente.

3 — Papel-moeda: emitido pelo Estado e garantido pelo Patrimônio Nacional. Além do curso legal (capacidade de liberar dívidas), tem curso forçado, sendo inconversível em metal”

Conclui-se então, que as cédulas analisadas são do tipo papel-moeda e os cheques do tipo representativa.

O contexto gráfico:

Segundo o livro Linha do Tempo do Design Gráfico no Brasil[6], a imprensa foi inaugurada em com a primeira impressão oficial de um livro em solo brasileiro no ano de 1808. A inauguração foi realizada no Rio de Janeiro e reconhecida pelo Império, antes disso era proibido imprimir qualquer tipo de material porém impressões consideradas ilegais já aconteciam.

Depois da oficialização da imprensa no Império do Brasil, rapidamente os jornais e revistas se espalharam pelo território nacional.

Em 1833 com o surgimento do Troco de Cobre define-se a primeira moeda de papel impressa no Brasil. Pouco tempo depois as cédulas passaram a ser impressas na Europa e nos Estados Unidos no século 19, esses locais já possuíam domínio de alto nível de impressão, o que trazia vantagem sobre o que acontecia no Brasil, assim deixando a cédula mais segura.

O primeiro livro impresso em São Paulo, Questões Sobre Presas Marítimas, foi impresso pela Typographia de Costa Silveira em 1836 e possuía o símbolo do cifrão sem o traço da curva superior impresso com tipografia de metal ao lado da folha de rosto.

À esquerda, temos o Troco de Cobre parcialmente impresso e parcialmente caligrafado de 1828 e à direita a cédula de Rs.20$000 impressa em 1833
Primeiro livro impresso em São Paulo, foto do acervo Brasiliana, no Itaú Cultural, São Paulo.

As moedas de papel:

O levantamento histórico das imagens das moedas de papel e seu contexto temporal foi feito através de pesquisas em livros e sites sobre numismática e design gráfico. A análise das moedas de papel utilizou fichas descritivas organizadas em ordem cronológica que relatam os seguintes quesitos divididos em duas partes:

A. Moeda de papel de forma geral

1. Descrição

2. Período de circulação (início e final)

3. Símbolo monetário (cifrão ou dólar)

4. Moeda vigente

5. Representação abreviada

6. Emissor

7. Impressor

B. O cifrão/dólar

1. Número de cifrões/dólares

2. Estilo

3. Terminal

4. Colunas

5. Eixo de contraste

6. Eixo das colunas

7. Eixo do S

8. Curva superior

9. Curva inferior

10. Relação com os números

11. Função

12. Observações extras

A anatomia do cifrão/dólar foi analisada dividindo o símbolo nas seguintes partes: colunas, terminais, curvas superior e inferior, espinha e eixos de contraste. Alguns modelos de moeda de papel não tiveram todos os requisitos preenchidos, mas levar em conta estes fatores são relevantes para uma visão geral da evolução dos cifrão/dólar e o modelo pode ser aproveitado para pesquisas futuras em outros documentos. Além destes quesitos, para melhor visualização geral do desenho dos símbolos, foi feito uma interpretação vetorial. Como nem todas as imagens das moedas de papel encontradas possuem alta resolução, uma vetorização precisa não foi possível, por isso na ficha consta o termo interpretação.

Foram observadas cédulas e cheques de 1810 até 1920. O símbolo monetário desaparece nas cédulas impressas pelo Tesouro Nacional a partir de 1889, mas ainda pode ser encontrado em moedas de papel produzidas por bancos ou outras instituições, ele também continua sendo utilizado em texto até os dias atuais pela representação de Reais (R$ ou R$).

Veja as fichas de análise aqui

Questionamentos:

Alguns pontos são levantados após esta pesquisa, o principal é que culturalmente o cifrão ainda é utilizado de forma vernacular. Seu desuso formal (substituído pelo dólar) seria uma questão técnica da falta do glifo na tipografia digital, uma opção dos designers/escritores ou ambos?

Ainda em meados do século 20, era possível encontrar o cifrão e o dólar em catálogos de fotocomposição e linotipo em famílias tipográficas clássicas. Em que momento as tipografias deixaram de possuir o primeiro caractere em seu conjunto? O cifrão nestes casos era feito para o mercados específicos ou de maneira global? No século 19, os tipos de metal que vinham da Europa, para o Brasil possuíam o caractere ou ele era feito por fundidoras nacionais?

Catálogo Linotype one-line-specimens, 1958, pg. 218 — A Linotype definia o cifrão como Milreis
Fotos tiradas pelas ruas de São Paulo

Outros países, como os Estados Unidos, também reconhecem o cifrão além do dólar como símbolo monetário. Inclusive é possível encontrá-lo em escritas manuais e vernaculares atuais, assim como no Brasil. Quando, ou o que, separa o cifrão do dólar nas terras norte-americanas? É a mesma questão brasileira?

Cena da 3ª temporada da série Black Mirror, produzida pelo Netflix

No final do séc. 19 início do séc. 20, os periódicos e publicações relevantes nacionais utilizavam qual tipo de símbolo monetário para seus preços de capa e para os textos internos?

Conclusão:

Após a análise de referências de doze cédulas produzidas ao longo de pouco mais de um século, pode-se observar uma evolução da forma do signo monetário que tem a ver com a evolução das técnicas de impressão. Nas imagens abaixo, referentes às cédulas de 1810 e 1828, pode-se ver que o cifrão ainda é caligráfico, feito com uma pena de bico e até de certa forma ornamentado, existia um cuidado especial com o caractere, talvez por uma questão estética, talvez como forma de destaque para facilitar a leitura do valor numérico.

À esquerda, detalhe da cédula de Rs.20$000 de 1810, ao lado, detalhe da cédula de Rs.50$000, de 1828

Com o passar dos anos e influências tipográficas, pode-se notar estilos com desenho de contraste de expansão derivados de formas como as famílias tipográficas Bodoni e Didot, onde a racionalidade, a máquina, tem mais projeção do que a mão do calígrafo. Existem alguns fatos especialmente curiosos, um deles na cédula 05 das fichas, onde o cifrão aparece espelhado, mais curioso ainda o fato que ele aparece espelhado apenas em duas cédulas desta série 1833 emitida pelo Tesouro Nacional, as de Rs.20$000 e de Rs.50$000. Este tipo de cifrão espelhado também foi encontrado em publicações subsequentes como “O Arlequim” de 1867 e “O Mosquito”, com os preços da assinatura desenhados a mão, levanta-se aqui então se um possível erro no desenho do signo nas cédulas não teria influenciado publicações posteriores.

Detalhe da revista O Arlequim, retirado do livro Linha do Tempo do Design Gráfico no Brasil, pg 46

O dólar aparece em alguns momentos quando já temos uma difusão maior das tipografias no Brasil, quando então começam a surgir os “vales”, ou cheques, onde comerciantes passam a criar a própria moeda de papel com valor de repasse, que eram parcialmente impressos, parcialmente preenchidos a mão, hoje a prática parece completamente inconcebível, mas era o início dos cheques que ainda temos de maneira oficial pelos bancos, que estão cada vez menos utilizados.

No topo, detalhe da cédula de de Rs.1$000, de 1866. Acima, detalhe da cédula de Rs.100$000, de 1851.

Nota: Esta discussão foi levantada por

, onde ele questiona o fato que o cifrão perdeu sua força ao longo do tempo e propõe como exercício em um workshop a criação de um novo símbolo monetário para o Real.

Bibliografia

[1] TRIGUEIROS, Florisvaldo dos Santos. Dinheiro no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1919/1987

[2] GONÇALVES, Cleber Baptista. Casa da Moeda do Brasil: 290 Anos de História. Rio de Janeiro: Imprinta Gráfica e Editora, 1984.

[3] REZENDE, Eduardo. Cédulas do Brasil. Disponível em: <http://www.moedasdobrasil.com.br/moedas/c_catalogo.asp?s=20>. Acesso em: 12/11/2016.

[4] Governo de Gibraltar. História. Disponível em <https://www.gibraltar.gov.gi/new/history#ancla3;>. Acesso em 21/12/2016.

[5] WAECHTER, Hans; FINIZOLA, Maria de Fátima W. A Cara e a Coroa da Moeda Brasileira: uma análise gráfica do papel moeda no Brasil. 7º P&D, Paraná, 2006.

[6] HOMEM DE MELO, Chico; RAMOS, Elaine (Org.). Linha do tempo do Design Gráfico no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2011;

[7] LAGO, Pedro Corrêa. (Org.). Brasiliana Itaú: uma grande coleção dedicada ao Brasil. [2. ed.] rev. e ampl. Rio de Janeiro: Capivara, 2014;

[8] MEGGS, Philip; PURVIS, Alston W. História do Design Gráfico. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

[9] DE JONG, C. W.; PURVIS A. W.; THOLENAAR, J. (Orgs.). A Visual History of Typefaces and Graphic Styles. Alemanha: Taschen GmbH, 2009;

[10] TIPOGRAPH FOTOCOMPOSIÇÃO. Catálogo de fotocomposição. São Paulo: Laborgraf, s/d.

[11] ARAGÃO, ISABELLA RIBEIRO. Tipos móveis de metal da Funtimod: contribuições para a história tipográfica brasileira — São Paulo, 2016.

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